Quando comecei a correr fi-lo
por desafio, para ser saudável e por paixão. Quer dizer a paixão pela corrida
veio com as primeiras passadas, cresceu e tomou mesmo proporções avassaladoras.
Aquele jovem de 20 anos que
tentava correr 15 minutos seguidos no Estádio Primeiro de Maio, em Lisboa,
tinha sido a criança que passara grande parte da sua infância “amarrado” a umas
pesadas botas ortopédicas, a palmilhas especiais e a consultas de ortopedia.
Aquele jovem ainda tinha na
memória a primeira vez que calçou uns “ténis” e se viu livre das botas.
Aquele jovem era o mesmo que
tinha sido dado como inapto para o serviço militar obrigatório por questões
físicas ou o mesmo que viria a surpreender, anos mais tarde, um conhecido, e
afamado médico, da selecção nacional de futebol devido à morfologia dos seus
pés. Surpresa que chegou ao ponto de chamar os colegas para verem o “fenómeno”!
Por tudo isto o jovem de 20
anos que tentava correr no Estádio do INATEL tinha pela frente um desafio muito
maior que um normal aspirante a corredor.
Mas era um jovem de aceitar
desafios com paixão, aliás era um jovem de viver tudo com paixão e sofreguidão.
E alcançou os 15 minutos de
corrida contínua, os 30 minutos, a mágica e eufórica hora.
Um dia aquela dupla que nasceu
para a corrida no Estádio Primeiro de Maio (tio e sobrinho) viu um anúncio de
uma prova de 14 quilómetros, O Grande Prémio Internacional do Círculo de
Leitores, e nasceu o desafio da primeira prova e depois a paixão de se correr
com dorsal.
Jovem apaixonado pela corrida
e pela vida, o mais natural foi um dia a meia maratona bater-lhe à porta e
seduzi-lo completamente.
Num aparte diga-se que os pés
deste já jovem fundista não se tornaram milagrosamente normais e que as lesões
só deixaram de o apoquentar tanto com a ida a uma consulta no Centro de
Medicina Desportiva de onde saiu com a “receita” de umas palmilhas desenhadas
numa folha de papel e depois mandadas fazer numa casa de próteses ortopédicas
mesmo junto da entrada, principal, do Hospital de São José.
E andou uns anos a correr com
palmilhas fabricadas por encomenda até que o destino o fez cruzar-se com uns
sapatos New Balance que tinham umas palmilhas que pareciam ser adequadas ao seu
problema e lá vai o jovem fundista à consulta do Centro de Medicina Desportiva,
com os sapatos novos que ficaram aprovados para serem usados sem palmilhas
especiais. Era o princípio de uma “coisa” que se chamava sapatos com controlo
biomecânico para pronadores severos, que o tem acompanhado durante os 35 anos
de ligação com a corrida.
Mas estávamos no ponto em que
a meia maratona bateu à porta do jovem fundista e o seduziu completamente.
Depois da rendição para com a
meia maratona ficou um certo vazio de novos objectivos e a maratona ainda não lhe
tinha batido á porta e piscado o olho.
Mas como era um jovem de
desafios e paixões mesmo ainda sem sonhar com os míticos 42,195 km resolveu
desafiar-se a si mesmo num treino de 30 km, aqui em Muge, no verão de 1983.
Desafio cumprido mal sonhava que em Dezembro desse ano cairá nos braços da
maratona para sua total perdição.
Rendido
aos encantos da corrida por ai andaria sem ultrapassar os míticos 42,195 km até
que o Professor Mário Machado o convida para correr uma prova de 12 horas em
1986 ou seja a primeira edição das 12 horas de Vila Real de Santo António.
Na
primeira edição das 12 horas o desafio era novo e parecia tão “maluco” que os
participantes na prova tinham, praticamente, que ser arranjados por convite!
O
já jovem Maratonista não sabia o que era isso da ultra maratona mas prontamente
aceitou tão honroso convite até porque se o Professor Mário Machado o achava
capaz de alinhar numa coisa dessas é porque era mesmo possível.
Uma
lesão impediu-o no entanto de estar presente em Vila Real de Santo António em
1986 mas no ano seguinte marcaria presença e de lá sairia com a marca de
101,650 km e um nunca sonhado 5º lugar. Para o bem e para o mal tornara-se num
dos pioneiros da ultra maratona em Portugal. Sim aquela criança de pés
“chatos”, palmilhas e botas ortopédicas cresceu, cresceu e correu 101,650 km em
12 horas, às voltas entre Vila Real de Santo António e Monte Gordo!
A
meio da década de 90 foi a paixão pelo que hoje se designa por trail que lhe
bateu à porta. Mesmo com uma passada e coordenação motora nada próprias para
esse tipo de provas rendeu-se completamente à montanha.
Participante
na primeira edição da Transestrela como caminheiro (turistas como se chamavam
na altura mas que percorriam a totalidade do percurso dos atletas, cerca de 30
km na primeira etapa e 20 na segunda), participante na segunda edição como
atleta, participante na primeira edição do Crosse da Serra do Açor debaixo de
um grande temporal e de muitas e muitas provas que abriram as portas ao que
hoje se chama trail.
Hoje
este “velho” fundista continua a correr por paixão e por desafio. Mesmo já
quase não alinhando em provas, continua desafiando-se, quase diariamente, em
corridas de prazer, alegria e por vezes sofrimento.
Com
um esqueleto mais velho que o que vem indicado no cartão de cidadão, com uma
coluna cheia de problemas, muito atreito a lesões e empenos de toda a ordem, a
paixão continua, e continuará, a mover este “velho” fundista.
Podia
fazer só umas corridinhas de manutenção, umas caminhadas, mas quem se move por
paixão não é assim.
A
vida e a corrida é andar nos limites! Nos limites actuais que são bem
diferentes dos meus limites de antigamente, mas sempre nos limites!
Para
mim não há limites para a paixão, não se metem fronteiras nos sonhos!
Acredito
que possa haver quem seja muito feliz apenas fazendo só corridas de 10 km, quem
se sinta pleno aos 21 km, e quem se sinta complementamente realizado com os
42,195 km de uma maratona!
Para
mim a felicidade foi sempre ir mais além, subir a fasquia, experimentar novas
fronteiras,
Para
mim viver é ir onde pensava que não conseguiria chegar!
Hoje
se já não posso subir a fasquia, se o esqueleto não me permite fazer desafios
novos, então reformulo as metas e tento ganhar as que hoje ainda me são
acessíveis! Mas parar é que nunca!
Está
é minha maneira de estar na vida e é ela que tento transmitir aos meus amigos.
Que rasguem os seus horizontes, que abram os seus sonhos, que vejam para além
do óbvio!
Sei
que alguns estão fartos de me aturar e me acusam de ser teimoso, mas amigos,
não é teimosia, é PAIXÃO E SONHO!
Foto: Paula Fonseca