Tinha dado por terminado mais
um treino naquele fim de tarde, início de noite.
Caía uma chuva miudinha e
fazia algum frio. A noite começava a envolver tudo no seu manto de solidão
naquele já um pouco longínquo mês de Março.
Já cheirava à lenha que ardia
nos “cibérios” e lareiras.
Ninguém se via na rua
O treino tinha decorrido
dentro da normalidade e apenas a porta de minha casa me separava da quentura do
desejado banho até porque equipado de calções e T-Shirt estava a começar a
sentir frio.
Estava então separado de um
banho quentinho, do jantar, do conforto do lar, por duas voltas à fechadura! Um
gesto tão simples e insignificante e abria-se a porta para o paraíso!
A minha casa era antiga, a
porta antiga e, para não destoar, a fechadura igualmente antiga.
Não querendo estragar a
estética da porta, sem vontade nenhuma de a furar para meter uma fechadura dos
tempos modernos fui mantendo a velha fechadura.
Mas quem vive sozinho e é um
solitário (na altura ainda estava longe o dia em que o destino me entregou,
numa esquina da vida, à mais bela e doce das Princesas) tem um problema tão
comezinho como seja transportar a chave de casa.
Pode parecer ridículo esse
problema do transporte da chave do lar mas se atendermos a dimensão e tipo da
minha velha chave verificamos que a coisa se complicava.
Na altura ainda não estavam na
moda as modernas provas de trail em que os corredores transportam todo o género
de tralha mas já havia bolsas de cintura e foi assim que eu encontrei a solução
prefeita para transporte da minha chave. Perfeita até aquele dia fatídico!
Abro a bolsa de cintura e onde
está a chave?
Não estava mais!
De tanto chocalhar dentro da
frágil bolsa furara a mesma e perdera-se algures, muito provavelmente, no
pinhal!
Estava pois eu a ficar cheio
de frio e molhado, a caminho de uma constipação, e separado de um duche quente
por uma porta para a qual deixara de ter chave!
Bonito!
Mas há sempre uma solução para
solitários precavidos! Nesse caso a solução era muito simples e distava uma
escassa dezena de metros: a casa dos meus saudosos primos em que eu tinha
deixado uma chave suplente.
E lá fui eu em andamento
acelerado buscar a chave salvadora (pensava eu!).
Os meus primos nem estranharem
a situação pois conheciam sobejamente a maluquice do primo!
E lá venho eu com a chave
salvadora a pensar que estava, finalmente, às tais duas voltas de chave, do
paraíso!
Há uma canção do Rui Veloso
que diz a dado passo “ o mundo inteiro uniu-se para me tramar”!
Pois devia estar num dia
assim!
A chave não abria a porta por
mais força que eu fizesse!
Já não era a primeira vez que
a fechadura a pedir reforma me pregara uns valentes sustos mas sempre acabava
por ceder e abrir. Só que desta vez nada e tanta força fiz que partiu aquela
argola no cimo destas chaves pré-históricas que é precisamente onde agarramos
para rodar a chave!
Ponto da situação: estou a
ficar gelado, já é de noite, os velhotes da minha vila adoptada já estão todos
no borralho eu aqui todo molhado de calções e t-shirt com um chave partida na
mão!
Mas quem é prevenido tem
sempre um plano B e eu como sou súper cauteloso tenho até plano C!
Toca a “voar” para a casa dos
meus saudosos primos:
Desculpem dêem-me ai as chaves
da casa da minha mãe que a minha chave partiu-se!
A minha mãe ainda morava na
Capital mas tinha cá casa e por isso um esquentador mais um banho quente e, com
alguma sorte, alguma roupa do meu padrasto devia-se arranjar.
E lá vou disparado para a casa
da minha mãe, o que vale é ser tudo muito perto!
Efectivamente consegui o tal
almejado banho e um fato de treino do meu padrasto que embora me desse um certo
(ou muito mesmo!) ar de palhaço foi um bênção do céu!
Ok banho e roupa tinha mas não
conseguia entrar em casa, nem jantar, nem podia ficar vestido daquela maneira!
Entrar em casa por meios não
ortodoxos talvez fosse possível mas muito complicado pois de tanto ter a casa
bem segura contra hipotéticos ladrões também me restavam poucas vias
alternativas para invadir o lar de outra maneira que não fosse pela porta e com
chave!
Claro que soluções havia mas
iriam dar muito trabalho e provocar grande estrago.
Mas habituado a viver no
“desenrasca”, até por motivos profissionais, lembrei-me: prendo um alicate de
grifes na chave e já dá para fazer muita força e talvez consiga vencer a fechadura.
E quem é que tinha um alicate
de grifes? O meu saudoso primo é claro!
E lá vou pela terceira vez a
casa deles (desta vez não em passo de corrida até porque havia o sério perigo
de tropeçar nas calças que eu era bem mais pequeno que elas!...).
Lá peço o alicate, lá vou
direito a casa com ele, engato-o na chave, faço força...faço força e clique,
clique, a fechadura abriu!
Só não gritei golo em altos
berros porque tive medo que me mandassem internar, fama de maluco já eu tinha
por demais!
Agora só me faltava devolver o
alicate de grifos e repor o fato de treino do meu padrasto no sítio de onde a
tirei.
Mas deixei essa tarefas para o
dia seguinte, apenas me limitei a vestir a minha roupa pois cozinhar o jantar a
arrastar as calças de um fato de treino pelo chão da cozinha e a meter as
mangas do mesmo dentro do tacho não dava jeito mesmo nenhum!
Em memória de Maria Gertrudes
e Paulo Ferreira com muita saudade e para o Alex e o João porque sim!